Na aldeia de São Bento da Contenda, a sul de Olivença, ainda se fala português oliventino. Os mais velhos continuam a ser guardiões das palavras que recordam tempos de uma terra outrora portuguesa. A localidade, que deve o nome a antigas disputas seculares travadas com outras localidades vizinhas, avista-se ao longe, com a planície a lembrar o Alentejo a pintar a paisagem, apenas interrompida pelo casario, de casas baixas, caiadas de branco, que se avista lá longe, no horizonte.
Fotos | Ana Clara
São seis da tarde. Aqui, na aldeia histórica de São Bento da Contenda, no município de Olivença, chega mais cedo o frio que antecipa o outono que está à porta. Entramos na localidade e ouve-se apenas o chilrear dos pássaros. Nas ruas não se vê viv’alma. Um cenário que parece contrariar os números que ditam que, ao todo, são 500 os habitantes que aqui residem.
A igreja matriz, mesmo no centro, assemelha-se a uma capela típica do Alentejo, e constitui o património local mais significativo. Dedicada a S. Bento, tem traços de influência portuguesa, e tem os traços arquitetónicos lusitanos, imitando, quase na perfeição, uma qualquer capela em Portugal.
O largo da Igreja, vazio, depressa se enche com um grupo de crianças que, em grande algazarra, surge repentinamente de uma das ruas laterais à capela. A arfar pela correria que as motiva e entre brincadeiras, sorrisos e algumas traquinices vivem a sua infância tranquilamente, protegidas pelos mais velhos que, das janelas, não os perdem de vista.
António Lopes Gomes e Castora confirmam: «vivemos aqui no largo e vamos olhando pelos netos dos outros». O casal, com raízes familiares em Vila Viçosa, mostra a hospitalidade «comum a toda a aldeia», como diz António, ao mesmo tempo que convida para um chá de hortelã e um bolinho de arroz.
A conversa desenrola-se na Língua de Camões, «meio espanholada», como diz Castora. «Eu aprendi com os meus pais, em casa, que falavam português entre eles».
António, 88 anos, recorda, com os olhos a encherem-se de água, os tempos de infância em que aprendeu a falar português. Foi graças ao avô, que, nos anos 40 do século passado, falava com ele «num português quase perfeito». «Mas era só em casa, que na escolha tinha de ser em castelhano», confessa.
As filhas já não cumpriram o mesmo destino. «Nenhuma delas fala português oliventino. Nem querem….», afirma, em tom aborrecido.
O que mais se orgulha, refere António, é da «pronúncia alentejana». «Mesmo estando deste lado da fronteira quando vem cá alguém de fora, de Portugal claro, ficam muito admirados, pois dizem que pareço mais alentejano do que espanhol. O sotaque herdei-o do meu avô».
«Portunhol»
Castora e António não trocam São Bento da Contenda «por nada neste mundo», apesar de lamentarem a perda de tradições portuguesas, como o folclore, que foram desaparecendo com a «castelhanização de Olivença», como recorda o antigo agricultor.
Porém, em casa, a gastronomia continua a não esquecer o país vizinho: «comemos açorda, bacalhau e muitas migas».
Paco Rodrigues Ferreira é motorista. É no café Central da aldeia que o vamos encontrar. Ao balcão, em pé, descontrai do dia de jorna que chegou ao fim. Uma cerveja e um prato de tremoços acompanha-o no momento de ócio do dia. Aos 42 anos reconhece que ainda «não perdeu o que os pais lhe ensinaram». A ele e aos oito irmãos de Paco.
«Falavam português em casa e foi sempre com eles que aprendi a língua». Apesar de cada vez falar menos, diz, em tom de brincadeira: «hoje em dia falo mais ‘portunhol’», provocando risos entre os amigos que o acompanham no «copo» ao balcão.
Francisco Franco Brito ri-se quando lhe perguntamos o nome. Também está no café da aldeia e acompanha Paco na cerveja. «Não tenho um apelido de boa memória», refere este homem de 76 anos, recordando o antigo ditador e chefe de Estado espanhol, no poder entre 1938 e 1973. Francisco viveu 49 anos na Catalunha.
«As dificuldades daquele tempo levaram-me a emigrar. Voltei há uns anos e é na minha terra que quero morrer», realça. Como todos os habitantes de São Bento da Contenda acima dos 60 anos fala num português oliventino compreensível e garante que falar na Língua de Camões é, «mais coisa menos coisa», como «aprender a andar de bicicleta, aprende-se para toda a vida».
Uma rua abaixo vamos encontrar Carlos Rodrigues, irmão de Paco, que nos convida a entrar na sua casa. Aos 37 anos, motorista de autocarros, tal como o irmão, aprendeu português com os pais. É dos poucos, da geração mais nova, que ainda fala fluentemente. Já os filhos, de três e seis anos, diz, «já não vão aprender como eu, apesar de entenderem algumas palavras.
À medida que o tempo foi passando, os mais novos foram deixando de ouvir os pais e, obviamente, que isso fará com que daqui a uns anos já ninguém na aldeia fale português».
É tarde e a noite já caiu em São Bento da Contenda. O relógio da Igreja Matriz bate nove badaladas. É hora de deixar a aldeia descansar no meio do mesmo silêncio que a encontramos.
Eduardo Naharro, professor de Português em Olivença, que nos acompanhou na visita, refere que «é fundamental recuperar o português oliventino» em São Bento da Contenda e também em Olivença.
No caso desta aldeia, onde melhor ainda se conserva a oralidade, há um projeto em preparação, promovido pela Associação Além Guadiana, que pretende fazer a recolha e documentação sobre o português que por aqui resiste. «A iniciativa contempla também a transcrição fonética para se estudar as diferenças entre aldeias. E para vermos as próprias diferenças do português oliventino e a língua portuguesa», afirma.